segunda-feira, 18 de julho de 2011

Crônica de viver uma cidade, a mais mineira das cidades: Ouro Preto


Hoje vou fazer diferente, não vou postar nenhuma receita, resolvi compartilhar essa crônica deliciosa de se ler que eu descobri outro dia na internet:

(...) Ouro Preto, terra mais que própria para vivermos as histórias de sempre, da infância, adolescência, maturidade... E vivermos as histórias de antes, de nossos pais, avós... E as histórias de quem está na história: Olímpia Cota, Bené da Flauta, Tiradentes – gente que não existe mais, mas cujas histórias eternizaram e mitificaram seus nomes, apelidos e feitos.
(...) "eu ouropreto" é verbo, percebem? Eu ouropreto, tu ouro pretas, ele ouro-preta, nós ouropretamos... É o verbo ouropretar, regularíssimo, conjugável em todos os tempos, modos e pessoas. Todos podem ouropretar, todos podem praticar a ação de viver Ouro Preto que o verbo expressa. Mas ouropretar expressa sentir a cidade, interpretá-la, tentar compreendê-la, passar pelo menos uma noite gélida perambulando em meio à névoa, entrevendo as ruas e as torres, e pelo menos um dia tórrido no alto do morro apreciando o conjunto setecentista. Em ponto menor, ouropretar pode ser até despencar de ônibus pelo meio da manhã, passar pelo Pilar em meia hora, correr para São Francisco e Conceição, engolir um feijão tropeiro com torresmo, ver um museu de cada lado da Praça Tiradentes e voltar para a rodoviária. Mas fazer isso é sempre uma experiência incompleta de ouropretação.
(...) Mas não é o tempo que conta, não é o tempo da quantidade de horas, semanas ou anos. O que conta é á intensidade do olhar, a obliqüidade da análise, a sutileza de perceber as diferenças do aroma da cidade na canícula de uma estiagem invernal ou na bolorenta invernada das consoadas. O que conta é tentar aprender a distinguir a voz o Elias dentre seus pares. É saber qual pedra da capistrana oferece risco quando garoa. Para entender as coisas que mencionei nas últimas frases, precisa ter ouropretado o suficiente para consumir no Chafariz o angu de uma bruaca de fubá. Tem que ter tomado cafezinho de mocotó e de jacuba na cozinha.
Ouropretar é viver os tempos da cidade, o tempo de agora, pois a cidade está viva, pulsante, se transformando, crescendo. Ouropretar é viver Vila Rica no tempo geológico, de seus morros que escorrem quando a piçarra satura de águas, em aluviões de ouro ou de morte, riqueza ou miséria. É viver os tempos das artes, nos resquícios de saramenha, nos contrafortes de São João, nos arcos das sete pontes. É chorar por um verso de Dirceu e por um compasso de Lobo de Mesquita. Ouropretei Nelo Nuno e ouropretei Jair Inácio. Ouropretava Honório Esteves e ouropretava Athayde se tivesse tido chance. Mas podemos ouropretar tudo de melhor desses quantos, pois, assim como a cidade, permanecem.
Ouropretar é viver nos tempos do calendário, até mesmo da folhinha de Mariana, tão certa no tempo da chuva, do sol e do vento quando podem ser as tabelas canônicas. É viver os tempos das festas e das rezas: Amendoim, Setenário, Bom Jesus, Reisadas, Semana Santa, Cinzas, e mais meia dúzia para cada altar pela cidade afora, mais uma para cada cruzeiro, ponte, passo, oratório ou promessa feita. Ouropretar é namorar no adro, conhecer pelo menos uma centena de nomes da aguardente de cana – goste dela ou não – e saber que remédio era a cardina que mitigava as penas do Aleijadinho.
Ouropretar é viver nos tempos dos relógios, no tempo do relógio do Museu, de meia em meia hora audível nas caladas. Esse tempo que marca a divisão entre o trabalho ou estudo e o ócio. Entre construir e preservar a cidade ou fruí-la, desfrutá-la, ouropretá-la. Esse é o tempo do sono sob pilhas de cobertas, o tempo de despertar cedo para ficar mais tempo à toa, o tempo do encontro ou do desencontro – dependendo se o ouro-pretano use como referência o relógio da torre da nascente ou do poente de Santa Efigênia, suprema sabedoria do arquiteto português que, financiado pelo africano com ouro da Encardideira, dá direito de optar até no ritmo da vida. Ouropretar é fundir os tempos dos verbos e da história, é amalgamar o passado ao manhã, projetando o futuro em que se possa manter contato com o ontem.
Pode-se ouropretar cada um a seu modo, a seu tempo, a sua arte, mas garanto-lhes que sempre  Eu “Ouro Preto”.
 
Fotos de Lucas Godoy

 O texto é de autoria de Públio Athayde e o verbo "ouropretar" como bem se sabe vem da música de Edmundo Guedes.

Um comentário:

  1. Obrigado por postar minha crônica; só que nunca ouvi falar desse Edmundo Guedes, nem sonho qual seja a tal música! Abraço.

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